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O que é um professor universitário?

25/05/2017 11h37 | Atualizado em: 25/05/2017 11h46

Espera-se que ele atue na formação de profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o conhecimento já sedimentado, mas também as novidades e macetes.

No Brasil, é comum ouvir tolices como “O Prof. Fulano reclama de dar aulas demais, mas o cargo dele é de professor, né?”. Ou seja, há muita confusão sobre quais seriam as reais atribuições de um professor universitário. Como esse é o cargo mais importante na carreira acadêmica, vale a pena dedicar um post inteiro a esclarecer essa questão.

É claro que, na prática, o que cada professor faz no dia a dia varia muito entre universidades. Na verdade, há uma enorme variação mesmo entre professores de uma mesma universidade. As atribuições também vão mudando, conforme se progride verticalmente na carreira: substituto > assistente > adjunto > associado > titular. Aqui não vou tocar em problemas como concursos-gincana, acomodação, estabilidade fácil, isonomia salarial, salário defasado em relação à inflação etc., que merecem outros posts. Vou focar no sentido maior do cargo.

Em outros idiomas e culturas, a diferença entre um professor universitário e outros tipos de professor fica clara já no vocabulário. Por exemplo, no inglês, o termo professor se aplica apenas ao professor universitário, enquanto teacher é o professor de escola e lecturer é o docente universitário, geralmente com doutorado, mas sem título de professor. Sim, nos EUA, Inglaterra e outros países, professor, mais do que um cargo, é um título. No alemão também se diferencia o professor universitário através do termo Professor, enquanto quem dá aulas em escolas é um Lehrer e quem dá aulas na universidade sem ter o título de professor é um Dozent. Não é uma questão de qual tipo de professor é melhor do que o outro. Cada professor tem o seu papel no sistema educacional e todos são importantes. É apenas uma questão de diferenciar as carreiras e títulos, para se definir claramente o que se espera de cada professor.

Então o que diferenciaria o professor universitário dos outros? Simples: esse cargo foi inventado para ser ocupado por profissionais que associam pesquisa e ensino. Sim, essas duas atividades são indissociáveis no conceito original de professor universitário.

“Mas, por que?”

Porque espera-se que um professor universitário esteja sempre na vanguarda da sua área. Espera-se que ele atue na formação de profissionais de nível superior, ensinando-lhes não apenas o conhecimento já sedimentado, mas também as novidades e macetes.

Para se formar em uma profissão de nível superior, o aluno tem que ser apresentado tanto aos fundamentos quanto à vanguarda. Acima de tudo, espera-se que um professor universitário produza ele mesmo algumas novidades. Sim, um professor universitário tem a obrigação não apenas de transmitir, mas também de produzir conhecimento. E a transmissão de conhecimento se dá principalmente em sala de aula, passando informações consolidadas para os aspiras, e também divulgando descobertas em revistas técnicas indexadas e revisadas por pares. Então um professor universitário tem que fazer pesquisa também? Sim, claro! Ninguém se atualiza tanto em uma área, quanto alguém que precisa disso para fazer as próprias pesquisas, porque ama a ciência.

And the plot thickens… Pelas leis brasileiras federais e estaduais, a carreia de professor universitário envolve, em geral, cinco pilares:

  • Ensino: coordenação e participação em disciplinas de graduação e pós-graduação, presenciais ou à distância.
  • Pesquisa: investigação científica ou tecnológica para produção de conhecimento. Na verdade, a área da pesquisa envolve mais um monte de coisas além da investigação e publicação, como revisão de artigos, editoração de revistas científicas, organização de congressos, administração de sociedades científicas, consultoria para agências de fomento, assessoria à imprensa, assessoria política dentro da área em que é perito e muito mais.
  • Orientação: formação de novos cientistas através de estágios e projetos orientados de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Também há orientação voltada para ensino e extensão.
  • Extensão: assessoria e divulgação de conhecimento científico e técnico para o público externo à universidade através de consultoria, palestras, cursos, exposições, museus etc.
  • Administração: cargos de chefia em geral, cargos em órgãos representativos da universidade (câmaras, conselhos, congregações), gerenciamento de projetos, captação de verbas externas, contabilidade, direção de laboratórios, etc

Dependendo da universidade e do seu regimento interno, espera-se que o professor universitário se envolva com no mínimo dois ou três desses pilares. Os melhores professores acabam se envolvendo com todos. O único pilar obrigatório é o ensino. Só fica desobrigado parcial ou totalmente de dar aulas quem ocupa altos cargos administrativos, como chefe de departamento, diretor de instituto, pró-reitor ou reitor. Significa que, contratualmente no Brasil, nem todo professor universitário é obrigado a fazer pesquisa e alguns ficam temporariamente desobrigados de dar aulas.

Vamos destrinchar um exemplo mais concreto: as universidades federais brasileiras. De acordo com a lei que rege essas instituições, o professor universitário “padrão” (sem cargo de chefia ou outras condicionantes) é obrigado a dar de 8 a 12 créditos por semestre. Cada crédito representa mais ou menos 15 h em sala de aula. Ou seja, o sujeito é obrigado a passar dentro de sala entre 120 e 180 h por semestre.

Só que essa é apenas a carga dentro de sala. Um professor veterano dedicado, que de fato gasta tempo e energia com as aulas, sempre investindo na atualização do conteúdo a cada edição de cada disciplina, precisa de no mínimo 2 h de preparação (slides, leituras, material biológico para aulas práticas, preparação de computadores etc.) para cada 1 h em sala. Se o professor é um novato, dando aquela disciplina pela primeira vez, só a preparação das aulas teóricas pode chegar a uma proporção horária de 1:10 (sala:preparação).

Para fazer um cálculo concreto de horas, vamos considerar que uma disciplina obrigatória de graduação tem 4 créditos (60 h) e costuma ser organizada de forma a ocupar 4 h em sala por semana, sendo ministrada por um professor veterano. Logo, das 40 h de trabalho semanais determinadas por lei, o professor acaba passando no mínimo 4 h envolvido com a disciplina em sala. Isso, fora as horas gastas com a atualização das aulas teóricas e práticas, além de atendimento de alunos e correção de trabalhos e provas. Assim, a conta pode facilmente chegar a 12 h por semana ocupadas com cada disciplina em cada semestre. Como o contrato federal obriga os professores a darem no mínimo 8 créditos por semestre, ou seja, o equivalente a duas disciplinas obrigatórias, estamos falando de um tempo mínimo de 24 h por semana focadas no ensino. Ou 360 h por semestre, em um semestre padrão com 15 semanas letivas.

Isso, porque 8 créditos são o mínimo. É comum em várias universidades os professores novatos serem explorados pelos colegas veteranos, que acabam jogando sobre seus ombros uma parte da carga que caberia a eles mesmos. Assim, não é difícil encontrar por aí professores federais em estágio probatório com cargas de 12 créditos ou mais, apesar de esse ser o teto legal.

Para se ocupar com um mínimo de 2 disciplinas de 4 créditos por semestre, totalizando 8 créditos, e realmente ministrá-las com qualidade, atualizando cada disciplina a cada edição e dando toda a atenção que os alunos demandam, o professor universitário não poderia se envolver com mais nada! A quem estamos enganando?

A única forma de aliviar essa carga é através de ajuda formal ou informal. Por exemplo, ajuda de pós-doutores ou pós-graduandos que atuam como tutores e de graduandos que atuam como monitores em disciplinas. Em algumas universidades, há também um esquema de duplicação de créditos permitida pelos colegiados de alguns cursos. Isso faz com que dois professores dividam uma disciplina de 4 créditos, com cada um recebendo 4 créditos, e não 2. Mas, dentro de uma mesma universidade, não é todo curso que permite isso.

Para piorar nem todo professor ou toda disciplina contam com o apoio de auxiliares. Os tutores remunerados conhecidos internacionalmente como “TAs” (teaching assistants), comuns nos EUA, Alemanha, França e UK, chegaram a ter uma versão brasileira temporária durante o Reuni. Só que o programa foi planejado para durar apenas cinco anos. Só para variar, nada é pensado a longo prazo neste país, tudo é jeitinho.

Como alguém pode se dedicar de verdade à pesquisa de ponta tendo sobre os ombros uma carga didática massacrante como essa? Como alguém pode fazer extensão e atender de outras formas o mundo real fora da Academia, sendo obrigado a dar aulas igual a um burro de carga? Na verdade, como seria possível conciliar qualquer um dos outros quatro pilares da carreira com um ensino de qualidade em grande quantidade?

Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência com pesquisa cientifica séria, de qualidade internacional, sabe que não dá para se dedicar a fazer descobertas relevantes e se manter na vanguarda da área, contando apenas com esse tempo que sobra. Ou seja, 16 horas por semana, sem contar o cansaço gerado pelas atividades de ensino, que demandam, além de tempo, muita energia. Isso, se o professor não estiver, ainda por cima, com algum cargo de subchefia ou assento em algum órgão colegiado, que via de regra não geram minimização de carga didática, nem remuneração extra.

Há, por outro lado, professores que abusam do sistema? Sim, infelizmente. Aposto que todos vocês conhecem pelo menos um professor que nunca aparece em sala de aula, sempre enviando os doutorandos do laboratório em seu lugar. Tem professores mestres da cara–de-pau que sequer aparecem na aula inaugural das próprias disciplinas…

Mas esses picaretas não são a regra e sim a exceção. Talvez um problema mais comum sejam os professores que, massacrados pelo sistema e passando anos apenas com incentivo para se acomodarem, acabam jogando a toalha. São aqueles colegas que dão as mesmas aulas, com as mesmas transparências amareladas ou slides desatualizados, por anos a fio. A ciência avança cada vez mais rápido, mas as aulas desses colegas desmotivados permanecem alheias às descobertas e revisões que vão sendo feitas em cada área.

O Brasil tem um verdadeiro fetiche pela sala de aula! Em universidades de ponta pelo mundo, a carga semestral obrigatória do professor não ultrapassa 4 créditos. Na prática, os professores e alunos passam muito menos tempo em sala, justamente porque se dá mais valor à independência dos aspiras. O bom aluno do ensino superior gasta a maior parte do seu tempo estudando por conta própria, sozinho ou em grupo, através de tarefas orientadas ou leitura espontânea. O momento em sala com o professor na aula teórica (lecture ou Vorlesung) serve para apresentar ou consolidar o conteúdo principal, receber orientações, tirar dúvidas e passar tarefas.

No Brasil, castramos a individualidade, a criatividade, a autonomia, a iniciativa e o livre pensamento, porque insistimos em adestrar os alunos em cativeiro. Ok, estou divagando. Voltando ao ponto de vista do professor, dá para entender porque nunca chegaremos ao mesmo nível de qualidade em ensino e pesquisa do primeiro mundo? Ficou claro porque estamos fadados a enxugar gelo e ficar sempre dois passos atrás dos nossos colegas mais afortunados?

Por favor, nunca mais diga que um professor universitário brasileiro não pode reclamar de dar aulas demais, porque “tem cargo de professor”. Isso é tão estúpido quanto dizer que um professor universitário que tem bolsa de produtividade está desrespeitando a dedicação exclusiva, porque é também “pesquisador do CNPq”.

“Mas, você não vai propor nenhuma solução, só vai reclamar?”

Já propus uma solução, na qual acredito piamente, em outro texto. Resumidamente, acho que a carreira universitária deveria ter mais subdivisões. Todos conhecem professores universitários que são excelentes cientistas, mas péssimos docentes. Há também os que dão aulas maravilhosas, mas não tem gosto pela pesquisa científica. E não podemos nos esquecer daqueles que fazem pesquisa morna e ensino morno, mas são gestores natos, sempre colocando ordem na casa, quando pegam cargos de chefia. Há ainda os colegas que sabem se comunicar com maestria com o público leigo, realizando projetos de extensão de grande impacto na sociedade, mas não manjam tanto de pesquisa ou administração. Por que não criamos carreiras separadas para cada um desses talentos, fazendo com que cada pessoa se especialize no que faz melhor e seja cobrada apenas por isso? O cargo de professor poderia ser reservado aos poucos que conseguem fazer bem todas essas coisas, enquanto a maioria seria contratada como pesquisador, docente, administrador ou divulgador de ciência, por exemplo. Orientação todos nós fazemos no final das contas, cuidando de pupilos em cada um desses ramos. Essa estrutura de carreira é usada no Reino Unido e outros países com muito sucesso, pois valoriza o que cada um tem de melhor e promove um sistema diverso.

Fonte: Sobrevivendo na Ciência

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